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Manifesto da SPSP em apoio à criança vitimizada


A Sociedade de Pediatria de São Paulo vem prestar apoio e solidariedade à menina vítima de estupro e submetida ao abortamento em 18 de agosto de 2020 e à equipe de saúde do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE), onde foi prestada a assistência adequada, repudiando a forma de condução inicial do caso, que incluiu o atraso no diagnóstico e a recusa da equipe médica local em interromper a gestação, fazendo necessária a transferência da menina para outro estado para realização do procedimento, além do vazamento de informações sobre o caso que permitiu o assédio por grupos ideológicos, constituindo mais uma violência em seu sofrido histórico.


Atenção em saúde dos casos de violência sexual contra crianças é fundamental e não depende de notificação ou da autorização de qualquer autoridade, uma vez que tais medidas já são previstas em lei. O atraso no diagnóstico e na adoção das condutas adequadas pode agravar os danos provocados pela situação. A Sociedade de Pediatria de São Paulo é sabedora da legislação vigente e das normas técnicas do Ministério da Saúde, que devem ser seguidos em sua íntegra e por todos os envolvidos nessas situações.


A nota oficial da Rede Médica pelo Direito de Decidir – “Global Doctors for Choice / Brasil”, elaborada pelos Drs. Helena Borges Martins da Silva Paro (Universidade Federal de Uberlândia e membro da Rede Médica pelo Direito de Decidir) e Cristião Fernando Rosas (Médico Toco-Ginecologista e Coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir), apresenta seu posicionamento perante a sociedade e afirma que esta menina, com apenas 10 anos, escancarou as deficiências do sistema de saúde do nosso país e ensina ao Brasil ao menos cinco grandes lições:

  1. Gravidez na infância e adolescência precoce mata. Os riscos de complicações obstétricas maternas e da mortalidade materno-infantil são significativamente maiores antes dos 15 anos de idade, como anemia, pré-eclâmpsia e eclâmpsia, diabetes gestacional, parto prematuro, parto em que, apesar do útero se contrair normalmente, o bebê não consegue passar pela bacia por estar bloqueado fisicamente (tudo isto consequência direta da imaturidade biológica, psicossocial e cognitiva), baixo peso ao nascer e complicações neonatais.

  2. Para acessar os direitos garantidos por lei, não é necessária autorização judicial para garantir à mulher, criança ou adolescente o acesso a esse direito – parece óbvio, mas não é. No Brasil existem três permissivos legais para o aborto previstos no Código Penal de 1940 (art. 128), o terceiro foi incluído por decisão do STF em 2012 (gravidez de feto com diagnóstico de anencefalia e, em 2005 foi publicada a Portaria 1.508/2005, que dispõe sobre o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos de violência sexual – deixa claro a inexistência da necessidade de autorização judicial e não se exige boletim de ocorrência policial para o procedimento do aborto.

  3. Não cabe objeção de consciência das instituições de saúde. Objeção de consciência em saúde é definida pela “recusa do médico em cumprir seu dever legal/profissional quando esse dever é contrário aos seus valores morais/éticos ou religiosos”. Neste caso, ele deve encaminhar [a pessoa com direito ao aborto legal] a um profissional capacitado e disposto, dentro da mesma unidade de saúde ou para outra unidade de fácil acesso, em consonância com as disposições legais. Segundo a OMS (2013), onde a referência não for possível, o profissional de saúde – mesmo não concordando – deve fornecer o abortamento sem riscos para salvar a vida da mulher e prevenir lesões graves à sua saúde. No Brasil, segundo a Norma Técnica “Atenção Humanizada ao Abortamento” do Ministério da Saúde, “embora exista o direito do médico à objeção de consciência dentro dos limites acima descritos, é obrigação da instituição oferecer aos usuários do SUS todos os seus direitos, inclusive o da interrupção das gestações nos casos previstos em Lei. Qualquer forma de exposição ou negação dos serviços a que a pessoa tem direito pode ser requerido e/ou questionado à luz da justiça”.

  4. O sigilo profissional é valor que deve ser reforçado pelas instituições de ensino e entidades de profissionais de saúde. Por haver desconhecimento por parte dos profissionais de saúde das garantias constitucionais, legais e éticas sobre a intimidade, privacidade e sigilo de informações dos pacientes, quando isso não ocorre, recomendam-se investigação e ações nas esferas criminal, civil e ético-profissional.

  5. Não existe idade gestacional limite para o aborto previsto em lei no Brasil e há desconhecimento geral sobre o conceito de aborto no Brasil, do que é aborto espontâneo ou induzido (esta forma é ignorada pela maioria dos livros – texto nacionais e o conceito de aborto espontâneo é frequentemente associado ao peso e idade gestacional). Esses equívocos levam a condutas inadequadas, como recusar cuidados a meninas, adolescentes e mulheres que têm direito ao aborto e chegam aos serviços de saúde com gravidezes em idades gestacionais mais avançadas (fato comum na situação de maior vulnerabilidade e desigualdade sociais).

De acordo com o Código Penal em vigência, qualquer gravidez em crianças de até 14 anos de idade se enquadra como crime, cabendo todas as medidas legais e de saúde, incluindo a notificação à autoridade judicial e à vigilância epidemiológica, não sendo necessária a confirmação do crime por autoridade policial ou judiciária.


Que esta trágica ocorrência, assim como todas as outras as situações de violência contra crianças e adolescentes, muito mais comuns do que as que vêm a público, sirva de motivação para todas as pessoas, particularmente os profissionais da saúde e da educação, para, ao suspeitar de algum caso, comunicar as autoridades (Conselho Tutelar, Delegacia de Proteção à Mulher, à Criança e ao Adolescente, Ministério Público ou Vara da Infância e Juventude) ou, ainda, fazer uso da denúncia anônima pelos telefones 180 (buscar em ajuda a vítimas de violência contra mulheres), 181 (Disque Denúncia) ou 100 (Disque Direitos Humanos, de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual).


Todos devem se conscientizar que esta comunicação dos casos suspeitos ou confirmados de maus tratos, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, é uma grande contribuição para proteger e interromper qualquer forma de violência que segue vitimizando crianças e adolescentes em todo o mundo.

*Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 4º – “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária.”

Art. 5º – “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais.”

Art. 13º – “Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra a criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade.”

Art. 245º – O médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche deve comunicar à autoridade competente, sob pena de multa, os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente.


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